Dízimo evangélico: obedece a tradições ou as Escrituras Sagradas ?.

 

Seguimos ao Espírito Santo que nos deixou suas Escrituras Sagradas. Como conseqüência, o acúmulo de tradições acrescentadas, e ensinos distorcidos foram adicionados a essa Escritura, e o original ensino de Jesus Cristo foi varrido de sua genuína igreja por Ele criada. Somos filhos dessa fé em Jesus Cristo nosso Mestre, e temos a obrigação de julgar nossas próprias práticas à luz da Bíblia, comparando Escritura com Escritura. Deveríamos hesitar em abolir ensinos que não se respaldam na Revelação? Não há erro quando alguém obriga a si próprio a não comer carne, ou guardar determinados dias, ou se abster de algo, ou colocar sobre si qualquer outra obrigação sobre a qual não há mandamento bíblico (Rm 14.2-6). Porém, o erro passa a existir quando pretendemos impor a outra pessoa exigências que a Bíblia não impôs. Pretendo demonstrar a seguir que o dízimo, conforme tradicionalmente ensinado e praticado nas igrejas evangélicas, enquadra-se nesta definição.

Um histórico da prática do dízimo:

A igreja pós-apostólica viveu a tensão entre a prática do dízimo e a afirmação paulina

de que Cristo nos libertou da lei (Gl 5.1). Nos séculos 5 e 6, encontramos a prática do

dízimo bem estabelecida nas áreas antigas da cristandade do ocidente. No século 8 os

soberanos carolíngeos tornaram o dízimo eclesiástico parte da lei secular. Já no século

12, os monges que antes tinham sido proibidos de receber dízimos, sendo obrigados a

pagá-los, obtiveram certa medida de liberdade ao obterem permissão para receber

dízimos e, ao mesmo tempo, tendo isenção do pagamento deles. Controvérsias sobre

dízimos sempre surgiram quando pessoas procuravam evitar o pagamento, ao passo que

outras tentavam apropriar para si as rendas dos dízimos. Os dízimos medievais eram

divididos em prediais, cobrados sobre os frutos da terra; pessoais, cobrados dos salários

da mão-de-obra; e mistos, cobrados da produção dos animais. Esses dízimos eram

subdivididos, ainda, em grandes, derivados de trigo, feno e lenha, pagáveis ao reitor ou

sacerdote responsável pela paróquia; e pequenos, dentre todos os demais dízimos

prediais, mais os dízimos mistos e pessoais, pagáveis ao vigário. Na Inglaterra,

especialmente por volta dos séculos 16 e 17, a questão dos dízimos foi uma fonte de

conflito intenso, visto que a Igreja Estatal dependia dos dízimos para sua sobrevivência.

Implicações sociais, políticas e econômicas eram consideráveis nas tentativas do

arcebispo Laud de aumentar o pagamento dos dízimos, antes de 1640. Os puritanos

ingleses e outros queriam a abolição dos dízimos, substituindo-os por contribuições

voluntárias para sustentar os clérigos. Mas a questão dos dízimos despertou paixões

ferozes e amarguras, notáveis dentre todas as questões associadas com a guerra civil

inglesa. Depois da guerra, o dízimo obrigatório sobreviveu na Inglaterra até o século

20.2

O texto clássico

Roubará o homem a Deus? Todavia, vós me roubais e dizeis: Em que te roubamos? Nos

dízimos e nas ofertas. Com maldição sois amaldiçoados, porque a mim me roubais, vós,

a nação toda. Trazei todos os dízimos à casa do Tesouro, para que haja mantimento na

minha casa; e provai-me nisto, diz o SENHOR dos exércitos, se eu não vos abrir as

janelas do céu e não derramar sobre vós bênção sem medida. Ml 3.8-10

Este é o texto clássico usado para ensinar aos membros da igreja a prática do dízimo,

isto é, a entrega à igreja de 10% do salário bruto mensal. É concordância generalizada

entre os evangélicos que o dízimo não é dado, mas sim “devolvido” a Deus. Não poucos

testemunhos confirmam que dar o dízimo acarreta bênção e o contrário traz maldição:

“Temos um colega que recebeu uma carta de uma senhora que foi membro de sua Igreja e

ele chorou amargamente ao ler aquela carta, porque aquela senhora dizia o seguinte: Pastor,

eu lhe agradeço por tudo quanto o senhor me fez durante o tempo em que fui membro da sua

Igreja. Mas eu fui obrigada a me mudar dessa localidade e fui freqüentar outra Igreja. O

senhor nunca me falou a respeito do dízimo. O outro pastor me ensinou a ser dizimista, e

Deus me abriu as janelas dos céus e me tem dado tantas e tão grandes bênçãos que eu

lamento ter perdido doze anos na sua Igreja recebendo maldição, quando Deus tinha uma

bênção sem medida para mim, se eu fosse fiel. Um pastor que recebe uma carta assim só

pode chorar.3

Testemunhos dessa natureza prendem a atenção dos ouvintes e são usados para

confirmar a veracidade do ensino a respeito do dízimo. É difícil discordar de algo que

produz resultados como este:

“Certo dia, quando recolhíamos os dízimos eu li este versículo. Estava presente um

engenheiro que, tendo sido muito rico, perdera tudo em poucas semanas, e quando eu li este

versículo ele compreendeu que isto tinha acontecido na sua vida, e, naquela hora, prometeu a

Deus que ia ser fiel na entrega dos dízimos. O que Deus fez e está fazendo na vida daquele

homem é simplesmente espantoso. Um ano depois este engenheiro era presbítero da minha

Igreja e podia dizer: Hoje eu sou muito mais rico do que era quando Deus assoprou minha

riqueza porque Ele já me devolveu em dobro o que assoprou. Este homem tem sido uma

bênção na Igreja e no seu trabalho.4

Doutrina, por mais atrativa que seja, não pode ter sua autoridade respaldada pela

experiência. O texto sagrado deve ser o único pilar sobre o qual se assenta o ensino.

Qualquer outro alicerce deve ser considerado supérfluo e indesejável. Sabemos também

que a doutrina não pode ser baseada num único texto. É necessário que haja uma

concordância com outras partes do Livro Santo. Examinemos se o dízimo, tal como é

ensinado acima, confirma-se à luz das Escrituras.

2 Extraído da “Enciclopédia Histórico-Teológica da Bíblia”. Ed. Vida Nova. Verbete “dízimo”. Negrito acrescentado. A afirmação

destacada merece consideração, pois os puritanos, nossos antepassados, representam o ápice do movimento reformado.

3 Extraído do livreto “Fidelidade. Mordomia Cristã. Dízimo — método divino de contribuição” do Rev. Jacob Silva. Ed. do Autor.

São Paulo. 1983. p..22-23

4 Idem, p. 21

O Novo Testamento ensina a prática do dízimo?

Uma primeira constatação é que não há, no Novo Testamento, nenhum parâmetro

mínimo estipulado para a contribuição.

O apóstolo Paulo organizou uma grande coleta para os necessitados da Judéia. As duas

epístolas aos Coríntios trazem referência a esta coleta:

Quanto à coleta para os santos, fazei vós também como ordenei às igrejas da

Galácia. No primeiro dia da semana, cada um de vós ponha de parte, em casa,

conforme a sua prosperidade, e vá juntando, para que se não façam coletas

quando eu for. 1 Co 16.1-2

Nos capítulos 8 e 9 de 2 Coríntios, Paulo desenvolve seu ensino acerca das

contribuições. Estes textos se referem à alegria da contribuição, à generosidade, à

liberalidade, à presteza em ofertar:

E isto afirmo, aquele que semeia pouco pouco também ceifará; e o que semeia

com fartura com abundância também ceifará. (9.6)

… porque, no meio de muita prova de tribulação, manifestaram abundância de

alegria, e a profunda pobreza deles superabundou em grande riqueza da sua

generosidade. (8.2)

Pedindo-nos, com muitos rogos, a graça de participarem da assistência aos

santos. (8.4)

… assim, como revelastes prontidão no querer, assim a leveis a termo, segundo

as vossas posses. (8.11)

porque bem reconheço a vossa presteza, da qual me glorio… ( 9.2)

Não vemos nenhuma referência a uma contribuição mínima que é obrigatória – o

dízimo – e a partir daí, ofertas voluntárias. Ao contrário, o ensino de Paulo, é que se a

contribuição não for voluntária, não deve ser dada:

Não vos falo na forma de mandamento, mas para provar, pela diligência de

outros, a sinceridade do vosso amor; (8.8)

Porque, se há boa vontade, será aceita conforme o que o homem tem e não

segundo o que ele não tem. (8.12)

Cada um contribua segundo tiver proposto no coração, não com tristeza ou por

necessidade; porque Deus ama a quem dá com alegria. (9.7)

Ainda que eu distribua todos os meus bens entre os pobres (…) se não tiver

amor, nada disso me aproveitará. (1 Co 13.3).

Ofertas voluntárias são o método de contribuição do Novo Testamento:

E sabeis também vós, ó filipenses, que, no início do evangelho, quando parti da

Macedônia, nenhuma igreja se associou comigo no tocante a dar e receber,

senão unicamente vós outros; porque até para Tessalônica mandastes não

somente uma vez, mas duas, o bastante para as minhas necessidades. Não que

eu procure o donativo, mas o que realmente me interessa é o fruto que aumente

o vosso crédito. Recebi tudo e tenho abundância; estou suprido, desde que

Epafrodito me passou às mãos o que me veio de vossa parte como aroma suave,

como sacrifício aceitável e aprazível a Deus. (Fp 4.15-18)

Paulo usa a figura dos sacrifícios vetero-testamentários com relação às ofertas: as

ofertas dos filipenses foram, diante de Deus, “como aroma suave, como sacrifício

aceitável e aprazível a Deus”.

Mas aquele que está sendo instruído na palavra faça participante de todas as cousas

boas aquele que o instrui (Gl 6.6). Paulo, aqui, faz referência à obrigação de dar

sustento àqueles que se afadigam no ensino da Palavra. Ensino repetido em 2

Tessalonicenses 5.12:

Agora, vos rogamos, irmãos, que acateis com apreço os que trabalham entre

vós e os que vos presidem no Senhor e vos admoestam; e que os tenhais com

amor em máxima consideração, por causa do trabalho que realizam.

E mais detalhado em 1 Coríntios 9:

Não temos nós o direito de comer e beber? (v 4)

Ou somente eu e Barnabé não temos direito de deixar de trabalhar? (v 6 - Paulo

refere-se ao trabalho secular).

Se nós vos semeamos as cousas espirituais, será muito recolhermos de vós bens

materiais? (v 11)

Não sabeis vós que os que prestam serviços sagrados do próprio templo se

alimentam? E que serve ao altar do altar tira o seu sustento? (v 13). A

referência aqui é a Dt 18.1, que permite aos levitas comer partes dos sacrifícios

oferecidos no Templo.

De fato, existe o direito bíblico (do qual Paulo abriu mão, pelo menos com relação aos

coríntios – 1 Co 9.15 – e aos tessalonicenses – 1 Ts 2.7,9; 2 Ts 3.8-9) de os pregadorespastores-

mestres serem sustentados pelas suas congregações:

Assim ordenou também o Senhor aos que pregam o evangelho que vivam do

evangelho. (v 14)…

Porém não há referência a dízimos.

Algumas outras citações, entre muitas:

compartilhai as necessidades dos santos. (Rm 12.13)

façamos o bem a todos, mas principalmente aos da família da fé. (Gl 6.10)

Aquele que furtava não furte mais; antes, trabalhe, fazendo com as próprias

mãos o que é bom, para que tenha com que acudir ao necessitado. (Ef 4.28)

Exorta aos ricos do presente século … que … sejam … generosos em dar e

prontos a repartir (1 Tm 6.17,18).

Note-se o ensino consistente e positivo do Novo Testamento a respeito da generosidade,

da liberalidade, da prontidão em repartir. A contrapartida negativa temos nas muitas

advertências a respeito da avareza:

O que foi semeado entre os espinhos é o que ouve a palavra, porém os cuidados

do mundo e a fascinação das riquezas sufocam a palavra, e fica infrutífera (Mt

13.22).

Tende cuidado e guardai-vos de toda e qualquer avareza; porque a vida de um

homem não consiste na abundância dos bens que ele possui. (Lc 12.15)

Sabei, pois, isto: nenhum … avarento, que é idólatra, tem herança no reino de

Cristo e de Deus. (Ef 5.5)

Porque nada temos trazido para o mundo, nem cousa alguma podemos levar

dele. Tendo sustento e com que nos vestir, estejamos contentes. Ora, os que

querem ficar ricos caem em tentação e cilada, e em muitas concupiscências

insensatas e perniciosas, as quais afogam os homens na ruína e perdição.

Porque o amor do dinheiro é raiz de todos os males; e alguns, nessa cobiça, se

desviaram da fé e a si mesmos se atormentaram com muitas dores. 1 Tm 6.7-10

Seja a vossa vida sem avareza. (Hb 13.5)

Esta é a doutrina. Isso é o que devemos ensinar. O que passar disso pode ser considerado ensino

bíblico?

Jesus ensinou a prática do dízimo?

Argumenta-se que Jesus ensinou que devemos dar o dízimo em Mateus 23.23:

Ai de vós, escribas e fariseus, hipócritas, porque dais o dízimo da hortelã, do

endro e do cominho e tendes negligenciado os preceitos mais importantes da lei:

a justiça, a misericórdia e a fé; devíeis, porém, fazer estas cousas, sem omitir

aquelas!

Note-se: obedecer os preceitos mais importantes da lei, sem omitir o dízimo da hortelã,

do endro e do cominho, é o que Jesus afirma.

De fato, esta afirmação de Jesus nos remete à discussão sobre a Lei e a Graça, o Velho e

o Novo Testamento, a Antiga e a Nova Aliança.

Não ignoramos a profecia de Jeremias: Eis aí vêm dias, diz o SENHOR, em que firmarei

nova aliança com a casa de Israel e com a casa de Judá… (31.31). Esta profecia foi

lembrada pelo autor de Hebreus que ensina a respeito de Jesus como Mediador de

superior aliança instituída com base em superiores promessas (8.6), e completa:

Quando ele diz Nova, torna antiquada a primeira. Ora, aquilo que se torna antiquado e

envelhecido está prestes a desaparecer (8.13). Paulo afirma o mesmo com outras

palavras: De maneira que a lei nos serviu de aio para nos conduzir a Cristo, a fim de

que fôssemos justificados por fé. Mas, tendo vindo a fé, já não permanecemos

subordinados ao aio (Gl 3.24-25).

Sabemos que há dois testamentos, duas alianças – uma antiga, que já passou, e uma

nova, que vigora. Mas, quando começou a vigorar a nova aliança, o novo testamento?

Hebreus responde: Porque, onde há testamento, é necessário que intervenha a morte do

testador; pois um testamento só é confirmado no caso de mortos; visto que de maneira

nenhuma tem força de lei enquanto vive o testador. (Hb 9.16-17) Oh! que significado

tem as palavras de Jesus na última ceia: porque isto é o meu sangue, o sangue da nova

aliança, derramado em favor de muitos, para remissão de pecados. (Mt 26.28).

Vemos, assim, que os evangelhos retratam acontecimentos da antiga aliança.

Poderíamos dizer que o Antigo Testamento se estende até Mateus 27.50 quando “Jesus,

clamando outra vez com grande voz, entregou o espírito.”

Dessa forma, podemos entender muitas passagens do NT:

Em Lc 1.15 o anjo Gabriel consagra João Batista ao nazireado, conforme Nm 6.3.

Em Lucas 2.21 Jesus é circuncidado obedecendo o disposto em Levítico 12.3;

Em Lucas 2.22 Maria se purifica conforme estabelecido em Levítico 12.4;

Em Lucas 2.23 os pais de Jesus oferecem o sacrifício prescrito em Levítico 12.6-8;

Em Mateus 8.4 Jesus manda um leproso fazer o sacrifício prescrito em Levítico 14;

Em Lucas 19.8 Zaqueu se submete duplamente à pena estabelecida em Êxodo 22.9;

Em Mateus 17.24 Jesus paga o imposto estipulado em Êxodo 30.11-16

Em Mateus 26.17 Jesus e os discípulos cumprem o requerido em Êxodo 12.1-27.

Entendemos, então, que enquanto Jesus vivia, a Lei Mosaica estava em vigor. Como

entender Mt 8.4, onde Jesus ordena a apresentação de um sacrifício de animal ao que

havia sido curado de lepra? É necessário que façamos isto hoje? Evidentemente que

não. Da mesma forma, quando, em Mt 23.23, Jesus ordena aos fariseus que dêem o

dízimo do cominho, da hortelã e do endro, devemos entender que eles estavam debaixo

da mesma aliança mosaica que obrigou o leproso a cumprir o ritual de Levítico 14. Há,

portanto, nos relatos dos evangelhos, um aspecto de transição entre o que é e o que há

de vir. Por isso é preciso cuidado para não impor sobre o Novo Israel prescrições

relativas ao Antigo Israel. Pois não estais debaixo da lei e sim da graça (Rm 6.14).

O dízimo está acima da Lei?

Existe uma passagem em Gênesis 14.20 – E de tudo lhe deu Abrão o dízimo – que é

usada para defender a prática do dízimo como supra-legal, ou seja, acima da lei. Eis o

argumento: Abrão deu o dízimo a Melquisedeque, rei de Salém, antes da Lei ser

estabelecida. Logo o dízimo é antes da Lei. Portanto o dízimo perdura após o fim da

Lei.

Tomemos outra passagem para testar a validade da argumentação acima – Gn 17.10:

Esta é a minha aliança, que guardareis entre mim e vós e a tua descendência: todo

macho entre vós será circuncidado. Em Gn 17.23-27 vemos Abraão circuncidando-se a

si, a Ismael, e a todos os homens de sua casa. Argumentemos: Abrão circuncidou-se

antes da Lei ser estabelecida. Logo a circuncisão é antes da Lei. Portanto a circuncisão

perdura após o fim da Lei.

Temos, assim, verificado que se este argumento é procedente para validar o dízimo, é da

mesma forma procedente para justificar a prática da circuncisão.

Uma preciosa norma de interpretação afirma que um texto descritivo pode ilustrar uma

doutrina, porém não pode ser base de doutrina. Porém é freqüente cair neste erro. Toda

a doutrina pentecostal do batismo com o Espírito Santo esta assentada sobre o livro de

Atos – descritivo por excelência. Usando textos descritivos grupos sectaristas ensinam,

por exemplo, o lava-pés (Ora, se eu, sendo o Senhor e o Mestre, vos lavei os pés,

também vós deveis lavar os pés uns dos outros – Jo 13.14); que a Ceia deve ser

celebrada com pão asmo (cf. Mt 26.17-19; Ex 12.1-27 – porém esquecem que Jesus

usou também vinho e não o suco de uva que a maioria das igrejas usa atualmente); que

o batismo só é válido quando feito em rio – “rios de águas correntes” é a expressão

usada (Mt 3.6). Kenneth Hagin, o fundador da “teologia” da prosperidade erige um

verdadeiro arranha-céu doutrinário sobre uma única afirmação de Jesus: Por isso, vos

digo que tudo quanto em oração pedirdes, crede que recebestes, e será assim convosco

(Mc 11.24).

Portanto, se é correto que não se pode basear doutrina sobre texto descritivo, tanto

Mt 23.23 quanto Gn 14.20 ficam invalidados para se justificar a prática atual do dízimo.

O Dízimo e a Lei Mosaica

Trazei todos os dízimos… (Ml 3.10).

Nenhum profeta do Antigo Testamento criou doutrina nova. A síntese do que diziam

pode ser resumida na seguinte sentença: Voltem para a Lei. Em outras palavras:

lembrem-se do que Moisés vos prescreveu. De modo que, se queremos saber mais a

respeito do dízimo devemos nos voltar para suas prescrições no Pentateuco. E é aí que

encontraremos algumas surpresas:

- Em Lv 27.30-33 aprendemos que os dízimos são Santos ao SENHOR.

- Em Nm 18.21ss aprendemos que os dízimos são herança dos Levitas.

- Porém em Dt 12.5ss e 14.22ss aprendemos a respeito da dinâmica da entrega dos

dízimos: eles eram comidos e bebidos pelo próprio ofertante e sua família no Templo,

diante do SENHOR, numa celebração alegre e festiva: A esse lugar [o Templo] fareis

chegar os vossos … dízimos… Lá comereis perante o SENHOR, vosso Deus, e vos

alegrareis… (12.6,7)

Se o caminho até o Templo fosse longo, o israelita poderia vender o seu dízimo e,

chegando a Jerusalém, comprar tudo o que deseja a tua alma: vacas, ovelhas, vinho ou

bebida forte, ou qualquer cousa que te pedir a tua alma; come-o ali perante o

SENHOR, teu Deus, e te alegrarás, tu e a tua casa. (14.26).

Repetidamente há a recomendação de não desamparar o levita (12.12, 18, 19; 14.27). E,

finalmente, no capítulo 14 uma ordem especial:

Ao fim de cada três anos, tirarás todos os dízimos do fruto do terceiro ano e os

recolherás na tua cidade. Então, virão o levita (pois não tem parte nem herança

contigo), o estrangeiro, o órfão e a viúva que estão dentro da tua cidade, e

comerão, e se fartarão, para que o SENHOR, teu Deus, te abençoe em todas as

obras que as tuas mãos fizerem. (v 28-29)

Portanto vemos claramente que somente de 3 em 3 anos o dízimo era entregue

integralmente aos levitas. Nos anos restantes ele era consumido alegremente “perante o

SENHOR” pelo próprio ofertante, por sua família e por muitos convidados, num grande

banquete. Em Ne 13.10-12, vemos a restauração da prática do dízimo no Judá pósexílio.

Ali está a referência aos “depósitos” onde eram armazenados os dízimos.

A que prática olvidada pelo povo Malaquias estava se referindo? A tudo o que

acabamos de descrever do livro de Deuteronômio. Portanto, se quisermos usar o profeta

para restaurar a prática do dízimo, não podemos omitir os textos Mosaicos a que ele está

se referindo, pois uma boa norma de hermenêutica diz que um texto não pode significar

para nós o que não significou para os seus destinatários originais.

O Dízimo e os Profetas

A esta altura uma pergunta se faz necessária: é correto que um texto do Antigo

Testamento de modo geral ou um texto de alguns dos profetas seja usado como base

para se ensinar a prática ou a abstenção de algum preceito? Alguns respondem que

sim, desde que se trate da lei moral, a qual continuamos obrigados a cumprir e não da

lei cerimonial essa sim, revogada. Mas, como fazer tal distinção? Exemplifiquemos com

o conhecido texto do profeta Isaías (capítulo 58) sobre o jejum aceitável a Deus: Seria

este o jejum que escolhi, que o homem um dia aflija a sua alma, incline a sua cabeça

como o junco e estenda debaixo de si pano de saco e cinza? … Porventura, não é este o

jejum que escolhi: que soltes as ligaduras da impiedade, desfaças as ataduras da

servidão, deixes livres os oprimidos e despedaces todo jugo? É moral ou cerimonial o

que escreve o profeta? E o final do discurso quando Isaías afirma: Se desviares o pé de

profanar o sábado e de cuidar dos teus próprios interesses no meu santo dia; se

chamares ao sábado deleitoso e santo dia do SENHOR, digno de honra, e o honrares

não seguindo os teus caminhos, não pretendendo fazer a tua própria vontade, nem

falando palavras vãs, então, te deleitarás no SENHOR. Eu te farei cavalgar sobre os

altos da terra e te sustentarei com a herança de Jacó, teu pai, porque a boca do

SENHOR o disse.

Guardar o sábado é moral ou cerimonial? Freqüentemente aquilo que parece cerimonial

está inextrincavelmente ligado ao que, sem dúvida, é moral. Não comereis cousa

alguma com sangue, não agourareis, nem adivinhareis. Não cortareis o cabelo em

redondo, nem danificareis as extremidades da barba (Lv 19.26). Não contaminarás a

tua filha, fazendo-a prostituir-se… guardareis os meus sábados… não vos voltareis para

os necromantes, nem para os adivinhos. Lemos, também, que Deus quis matar Moisés

porque este não havia circuncidado seus filhos (Ex 4.24-26) e que a pena de morte era

prescrita para quem não guardasse o sábado (Ex 31.14-15). Para o judeu comer comida

kosher (pura), guardar o sábado, circuncidar a si e seus filhos e usar barba era tão moral

quanto não consultar necromantes ou adivinhos e não prostituir sua filha. Portanto,

como justificar que usar Malaquias 3.10 para se requerer a prática do dízimo é legítimo

e não é legítimo usar Isaías 58.13 para se exigir a guarda do sábado? Por que critério

Malaquias 3.10 é atual e não Malaquias 4.4? “Lembrai-vos da lei de Moisés, meu servo,

a qual lhe prescrevi em Horebe para todo o Israel, a saber, estatutos e juízos.” E, se

Malaquias 3.10 continua vigorando, onde o Livro Santo nos autorizou a alterar a prática

do dízimo conforme prescrita pela lei de Moisés?

Calvino e a mordomia5

Calvino, nos Comentários aos Cinco Livros de Moisés, nos trechos referentes às

primícias, aos dízimos e às oferendas escreve que estas prescrições têm um significado

5 Calvino deixou em sua vastíssima obra, valiosos e densos comentários sobre a vida material: riquezas, propriedades, trabalho, descanso, banqueiros, empréstimos, impostos, diaconia, remuneração, etc. Para quem quiser se aprofundar neste assunto recomendo

a obra O Pensamento Econômico e Social de Calvino, de André Biéler, publicado pela Casa Editora Presbiteriana.

Assim, comentando a exigência do imposto do templo (Ex 30.16) ele escreve:

Deus os taxou todos a uma e a mesma soma, a fim de que, desde o maior até o menor,

cada qual, qualquer que fosse o seu estado ou qualidade, reconhecesse que Lhe

pertencia inteira e totalmente. E não é de maravilhar, visto que era esse (como se diz)

um direito pessoal e as faculdades não se creditam a que o rico, de fato, contribuísse

mais do que o pobre, mas antes, que o tributo era pago igualmente pessoa por pessoa.

Comentando o texto de Mt 17.24 ele acrescenta: Sabemos que a Lei lhes impunha pagar

cada um anualmente meio estáter e que Deus, que os havia resgatado, era para eles o

Rei Soberano. Ou seja, para Calvino, este imposto simboliza a redenção que Jesus

efetua em favor de cada pessoa do seu povo. Da mesma forma, comentando sobre as

primícias, “Calvino afirma que São Paulo mostra que se a oferta das primícias, como

rito, foi abolida, guarda-nos, todavia, o significado espiritual.”6 Sem a cerimônia,

permanece ainda a verdadeira observância, quando nos exorta ele a glorificar o nome

de Deus, até mesmo no beber e no comer (1 Co 10.31)7

Comentando o voto de Jacó em Gn 28.22 (E, de tudo quanto me concederes, certamente

eu te darei o dízimo), Calvino escreve: Os atos externos não caracterizam os

verdadeiros servidores de Deus, são apenas subsídios de piedade.8

Comentando 2 Co 8.8, o reformador escreve: Verdade é que, por toda parte, ordena

Deus que acorramos a ajudar os irmãos em suas necessidades; mas, verdade é também

que nenhuma passagem há em que nos defina a soma, quanto lhes devemos dar, a fim

de que, feita estimativa de nossos bens, repartamo-los entre nós e os pobres; nem, de

maneira semelhante, onde nos obriga a certas circunstâncias, nem de tempo, nem de

pessoa, nem de lugar, mas à regrada caridade nos conduz.9

No entanto, Calvino não deixa de enfatizar aquilo que já vimos: o ensino a respeito da

generosidade e a precaução contra a avareza:

A vontade liberal é agradável a Deus tanto do pobre quanto do rico… verdade é

que é bem certo que devemos a Deus não apenas uma parte, mas, afinal, tudo o

que somos e tudo o que temos. Entretanto, segundo Sua benevolência, até esse

ponto nos poupa, que Se contenta desta comunicação que o Apóstolo aqui

ordena. O que, pois, ensina ele aqui é um relaxamento, por assim dizer, daquilo

a que somos obrigados no rigor do direito. Contudo nosso dever é estimular-nos

a nós mesmos a darmos com freqüência. Não há temer que sejamos

exageradamente descomedidos neste aspecto, pelo contrário, há é o perigo de

sermos demasiado sovinas.10

Ainda comentando 2 Co 8.8, Calvino acrescenta: Ora, esta doutrina é necessária contra

um bando de visionários que pensam que nada havemos feito, se não nos despojamos

inteiramente para termos tudo em comum. Na verdade, tanto fazem por sua fantasia,

que ninguém pode dar ajuda em boa consciência. Eis porque é preciso observar-se

diligentemente a moderação de São Paulo, a saber, que nossa ajuda seja agradável a

Deus, quando de nossa abundância acorremos à necessidade dos irmãos, não de tal

maneira que tenham a ponto de regurgitarem, enquanto nós ficamos na condição de

6 Biéler, op. cit. p. 473, negrito acrescentado.

7 Sermão de Calvino sobre Dt 14.21-28, negrito acrescentado.

8 Comentários aos Cinco Livros de Moisés

9 Comentários ao Novo Testamento 2 Co 8.8, destaque acrescentado.

10 Idem

necessitados, mas antes, que do nosso distribuamos segundo o permite nossa própria

capacidade, e com alegria de coração e ânimo disposto.11

Conclusão

Cremos que as Escrituras Sagradas do Velho e do Novo Testamento são a

Palavra de Deus é a única regra de fé e prática dada por Ele à sua Igreja, e que são

falsas e perigosas todas as doutrinas e cerimônias contrárias a essa palavra, e todos os

usos e costumes acrescentados à simples lei do Evangelho de nosso Senhor Jesus

Cristo?

O que devemos fazer? A confissão que fizemos nos lembra que tudo o que é extrabíblico

é, na verdade, anti-bíblico, que qualquer imposição que se revele sem raízes nas

Escrituras deve ser considerada falsa e perigosa, mesmo que tenha sido instituída com

propósitos elevados.

O dízimo tradicionalmente praticado pelos evangélicos é bíblico? Se não for não pode

ser legitimamente exigido de nenhum membro. Já se afirmou que se o dízimo for extinto

a igreja perderá o seu sustento. Ora, este não é um argumento bíblico. Respondemos

que a doutrina bíblica nunca prejudicará a vida da igreja e que a verdade jamais será

perniciosa; pelo contrário, se tivermos a determinação de ensinar que os membros são

livres para dar ou não dar, que não há patamar mínimo exigido, que Deus ama a quem

dá com alegria, que devemos ser generosos, guardar-nos da avareza, ser prontos em

repartir, acumular tesouros no céu… Deus responderá derramando sobre a Sua igreja

bênçãos sem medida. Concluímos que o ensino enfatizado do N.T. se resume em repartir

recursos sem reserva e mutuamente em amor e graça.